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O Último Duelo

O Último Duelo

Aos 84 anos de idade, Ridley Scott é um dos mais prolíficos realizadores da actualidade. Bastar-lhe-iam Alien: O 8º Passageiro e Blade Runner: Perigo Iminente para ter conseguido um lugar no panteão do cinema norte-americano, mas a verdade é que Scott nunca desacelerou o ritmo da sua produção, tornando-se um dos mais versáteis e fiáveis realizadores de Hollywood. Nem sempre aclamado pela crítica nem abraçado pelo público, oferece consistentemente obras de vincada personalidade. Algumas delas, tornaram-se grandes sucessos comerciais e conseguiram a atenção dos Óscares, casos de títulos tão diferentes entre si como Thelma & Louise, Gladiador — que viria a arrecadar a estatueta para Melhor Filme —, Cercados e Perdido em Marte. O seu gosto pelo filme histórico de fôlego épico data do seu título de estreia, O Duelo, passando por 1492: Cristóvão Colombo, ainda antes do fenómeno Gladiador. Curiosamente, apesar de nunca alcançar o mesmo nível de sucesso depois deste título, Scott insiste ocasionalmente no género, sendo o mais recente exemplo O Último Duelo, título que parece ressoar com o seu filme de estreia, não só na referência a um duelo, mas por também ambos tomarem lugar em França.

Muito embora a compreensível apreensão por ver Ridley Scott regressar a um género no qual não tem dado propriamente cartas, O Último Duelo intriga por voltar a reunir Matt Damon e Ben Affleck, tanto à frente das câmaras como na escrita do argumento. Motivo de interesse adicional é a contribuição da cineasta de sensibilidade indie Nicole Holofcener na escrita do guião, prometendo uma estrutura formal a fazer lembrar Às Portas do Inferno, de Akira Kurosawa, em que os mesmos acontecimentos são contados por três perspectivas diferentes, cada uma escrita por um dos elementos do trio de escritores. Prometo que esta será a primeira e última referência ao clássico do mestre japonês, até porque o conceito de O Último Duelo não se limita a um único acontecimento descrito em três versões diferentes, tendo uma abordagem muito mais abrangente no que respeita aos diferentes olhares sobre o desenrolar de uma história de maior envergadura. Resta dizer que se conta aqui uma história baseada nos acontecimentos verídicos que levaram ao julgamento por combate entre o cavaleiro Jean de Carrouges e o escudeiro Jacques Le Gris, o último duelo em contexto judiciário a ocorrer em França, na sequência da acusação lançada pelo primeiro ao segundo de ter violado a sua mulher, Marguerite de Carrouges.

Jodie Comer, mais conhecida pelo seu trabalho na televisão, é Marguerite de Carrouges, e Matt Damon encarna o cavaleiro com quem esta casa, Jean de Carrouges. Ben Affleck, inicialmente apontado para encarnar o escudeiro Jacques Le Gris, optou por interpretar o colorido Conde Pierre d’Alençon, ficando Le Gris a cabo de Adam Driver. A história é então contada em três capítulos distintos nos quais podemos acompanhar o ponto de vista de Jean, de Jacques, e por fim de Marguerite. O que salta logo à vista é o título de cada capítulo deixar claro que vamos assistir a um ponto de vista subjectivo, ou seja, a verdade segundo a personagem que a conta. Muito embora o filme acabe por tomar o seu partido, avançando uma hipótese de verdade absoluta, o que está aqui em causa é a natureza irreconciliável de pontos de vista distintos sobre os mesmos acontecimentos. Não obstante os factos, o conceito de verdade é sempre ilusório e elusivo, dependendo dos nossos credos, convicções e preconceitos. É por isso que Jean de Carrouges se vê como um herói no campo de batalha e compassivo amante na intimidade do lar. É por isso que se vê injustiçado perante a preferência do Conde Pierre d’Alençon a Jacques Le Gris, apesar da amizade que une os dois homens. Ou que Le Gris, apesar de defender o bom nome de Carrouges junto de terceiros, não consiga evitar juntar-se à zombaria de que o amigo é alvo.

Mas o que está no cerne deste episódio, a violação de Marguerite por Jacques, não só encerra em si uma perene realidade da condição feminina, como sublinha as injustiças sociais, religiosas e políticas impostas pelo patriarcado, e pela eterna ilusão de superioridade do homem sobre a mulher que a perpetua. Mais assustador que as pequenas ou grandes diferenças entre o relato do violador e da violada é a convicção absoluta até ao último minuto de Jaques Le Gris de que não tinha feito nada de mal. Ao fim e ao cabo, segundo ele, o amor entre os dois era inevitável, e os protestos de Marguerite próprios da condição de ser uma senhora. Fazendo eco com a realidade do século XXI, depois do acto revelado, segue-se um calvário para Marguerite, não só na tentativa de desacreditação por parte do tribunal e do próprio círculo de amigas, como na postura do marido — Matt Damon no mais vil que já o vimos — segundo o qual o que aconteceu à mulher é uma afronta a si próprio, exigindo possuí-la imediatamente para que o último homem a tê-lo feito não seja o seu amigo tornado rival. Por fim, a soberba de Jean de Carrouges em defender o seu bom nome em combate, pode levar Marguerite à fogueira, em caso de derrota do marido, ficando provada pela lei de Deus a sua culpabilidade.

Que esta história, ao mesmo tempo íntima e universal, seja contada com sucesso com um pano de fundo de violência bélica, parece um feito ao alcance de poucos realizadores, e Ridley Scott está perfeitamente no seu elemento, encenando sequências de combate sangrentas, de grande  realismo, no entanto inusitada beleza plástica. Jodie Comer é excelente, como Marguerite, com uma interpretação recheada de subtilezas, não só para reflectir as cambiantes entre as diferentes narrações, como ao reproduzir uma mulher a navegar um mundo de homens, quando as mulheres serviam, aos olhos destes, para pouco mais do que serem oferecidas pelos pais em casamentos de conveniência para produzirem herdeiros aos seus novos maridos, donos e senhores. Ultrapassando os cortes de cabelo — que, apesar de fiéis à época, se apresentam como uma verdadeira distracção — e os sotaques duvidosos — com Damon, especialmente, a proferir o seu próprio apelido como se se tratasse de um turista americano perdido em Paris —, a verosimilhança da recriação de época e a intensidade das interpretações são suficientes para nos embrenharem na narrativa. Matt Damon  tem o papel mais vistoso, e Adam Driver, como sempre, não desilude. O especial destaque vai para a libertinagem do Conde Pierre d’Alençon, com Ben Affleck a parecer bastante confortável na sua pele, e para o jovem Alex Lawther, com um retrato ligeiramente descentrado do Rei Carlos VI, a deixar antever os episódios de desequilíbrio mental que o viria a afligir.

O Último Duelo merecia ter tido mais espectadores nas salas de cinema, porque o risco de virmos a deixar de ter bons filmes épicos com temas adultos é bem real. Pode ser que venha a ser descoberto aos poucos na Disney+, e que consiga, ironicamente para uma produção de cem milhões de dólares, angariar um culto apreciável à sua volta. E assim, Ridley Scott pode continuar a apostar em produções ambiciosas, mesmo correndo o risco de, em vez de Gladiador o O Último Duelo, acabarmos com um Exodus: Deuses e Reis ou um Robin Hood.

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