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O Poder do Cão

O Poder do Cão

Depois de uma entrada em cena fulgurante no arranque da década de 1990, pontuada pela Palma de Ouro em Cannes e o Óscar de Melhor Argumento Original por O Piano, a neozelandesa Jane Campion ofereceu-nos continuamente  filmes desafiantes, mas a sua produção foi-se tornando cada vez mais rara. O seu último filme, Bright Star - Estrela Cintilante, data de 2009. No entretanto, foi atraída pela televisão, sendo co-autora da série Top of the Lake, encabeçada por Elizabeth Moss, para a qual escreveu e realizou grande parte dos episódios das suas duas temporadas entre 2013 e 2017. As obras de Campion, invariavelmente encabeçadas por protagonistas femininas, gravitam temas de política de género, incluindo explorações do poder da sedução e da sexualidade feminina. Foi, por isso, extremamente intrigante, encontrar Benedict Cumberbatch como a figura central de O Poder do Cão, num elenco que conta ainda com o casal Kirsten Dunst e Jesse Plemons, e o jovem actor Kodi Smit-McPhee.

The Power of the Dog foi adaptado do romance homónimo de Thomas Savage e conta a história dos irmãos Phil e George Burbank, dois abastados rancheiros no estado norte-americano do Montana, em 1925. O volátil e desdenhoso Phil vive na sombra da memória do falecido mentor "Bronco" Henry. Quando George se apaixona e casa com a viúva Rose, mãe do sensível e andrógino Peter, Phil desaprova o enlace e mostra-se abertamente hostil para com Rose, zombando-a e enervando-a constantemente. Rose, por seu lado, sente a pressão de querer agradar George, cedendo finalmente ao álcool quando essa expectativa se torna insuportável. Quando Peter passa as férias de Verão no rancho, Rose teme pelo filho. Inicialmente, Peter é gozado por Phil e pelos seus ajudantes, no entanto a relação entre os dois tem uma mudança inesperada, com Phil repentinamente a mostrar-lhe respeito e a tomar o jovem como seu aprendiz.

The Power of the Dog é um filme fascinante, de construção paciente e meticulosa, que respeita a inteligência do espectador. A sua narrativa desenrola-se como se se tratasse de uma refinada peça de tapeçaria, da qual apenas vamos vendo cada um dos pontos, enquanto o tecelão a trabalha. A cada passo, apreciamos a técnica e o labor, e só no final temos oportunidade de contemplar a magia da obra como um todo. Filmando numa zona rural da Nova Zelândia, que passa impecavelmente pelas áridas e montanhosas paisagens do Montana, Jane Campion traça um retrato de masculinidade perfeitamente alinhada com a aspereza da região e da época assente num desempenho irrepreensível de Benedict Cumberbatch, muito embora algumas críticas ao seu sotaque. O que parece um erro de casting, vem-se a revelar uma escolha acertada quando percebemos o jogo de máscaras de Phil, ele próprio desconfortável com o seu papel numa permanente interpretação que esconde a sua natureza. Ao contrário de George, um subjugado e discreto Jesse Plemons, pouco à vontade no seu papel de rancheiro, Phil impõe a sua presença e existência projectando uma masculinidade tóxica em linha com as expectativas da sua posição. O seu comportamento exibe orgulho e desprezo pelos demais, mas esconde também pormenores de carácter que colocariam em causa a superioridade que ambiciona exibir. Por exemplo, apesar de agressivo, nunca o vemos exibir violência física sobre terceiros, reservando o seu chicote para um cavalo num momento de purga da sua cobardia e frustração.

Voltando ao tema das expectativas, também Kirsten Dunst, como Rose, é vítima das expectativas inerentes ao papel de esposa — impostas tanto pelo seu desejo de agradar como pelo peso das tácitas normas sociais. Perante a passividade e ausência de George, muitas vezes em viagens de negócios, trava-se um silencioso confronto psicológico entre Phil e Rose, culminando na extraordinária cena em que Rose pratica piano sem grande sucesso, com vista a alegrar um serão planeado com os pais do marido e outros ilustres convidados. Frustrada com o seu talento enferrujado e limitado, é zombada por Phil que, no andar de cima, e sem proferir uma palavra, toca a mesma peça musical no seu banjo com extraordinária destreza e refinado talento.

The Power of the Dog volta a tocar no tema das tensões e jogos de poder entre géneros tão caro a Jane Campion, e também aqui a palavra central é “expectativa”. A reentrada em cena de Peter, que tínhamos visto ser gozado por Phil e ajudantes na desconfortável cena inicial no restaurante em que o jovem trabalhava com a mãe, por causa das flores de papel da sua autoria que decoravam a mesa, joga com as expectativas do espectador, bem como com os seus preconceitos. Desse momento em diante, instala-se uma tensão ambígua e inquietante, com previsível desfecho trágico, não fosse o brilhantismo do argumento. As nossas ideias pré-concebidas enquanto espectadores são colocadas em cheque quando percebemos que a tensão não era justificada, no momento em que nos é finalmente revelado onde reside o verdadeiro poder na dinâmica das relações estabelecidas no ecrã. Kodi Smit-McPhee acaba por ser a verdadeira estrela do elenco, com uma interpretação claramente nas franjas do tradicional, perfeitamente consciente  do meio em que está inserido e do seu papel, altamente adaptável, sem nunca assumir para si a vitimização que outros filmes menores lhe reservariam.

Resta deixar uma nota para mais uma banda sonora de excepção de Jonny Greenwood na qual usa instrumentos de forma pouco tradicional, tais como um violoncelo tocado como se de um banjo se tratasse, instrumentos de sopro produzindo sons atonais. Estas inquietantes composições ilustram de forma perfeita o tom do filme, bem como a interioridade e tensão psicológica da narrativa, evitando lugares-comuns do género, sem no entanto se esquecer do cenário de faroeste americano em que decorre.

Apesar de ter passado ao lado do grande-ecrã, The Power of the Dog não só é um regresso em grande forma de Jane Campion, como é um dos grandes acontecimentos cinematográficos de 2021.

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