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Águas Profundas

Águas Profundas

A sensualidade sempre esteve presente no cinema de Adrian Lyne. Marcou as sequências de dança de Jennifer Beals em Flashdance, inesperado êxito que abriu as portas a Nove Semanas e Meia. Aqui, a sugestão de sensualidade deu lugar à sexualidade desinibida em tórridas cenas entre Kim Basinger e Mickey Rourke, em mais um sucesso de bilheteira que pareceu marcar o tom dos futuros filmes do seu realizador.

Em 1987, logo no ano seguinte a Nove Semanas e Meia, estreou Atracção Fatal, com Michael Douglas e Glenn Close nos principais papeis, um thriller erótico que se revelou mais um sucesso comercial para Adrian Lyne, virou fenómeno cultural, e angariou seis nomeações aos Óscares, incluindo Melhor Filme e Melhor Realização. Atracção Fatal não só lançaria Michael Douglas numa carreira assente em yuppies de masculinidade vincada e questionáveis valores morais como lançaria o debate (que ainda hoje se mantém) sobre a exploração de desequilíbrios mentais e emocionais em filmes de Hollywood, bem como a representação das mulheres nesses mesmos filmes.

Atracção Fatal parece ter aberto um nicho de mercado para Adrian Lyne. Deste então, à excepção de BZ - Viagem Alucinante, os seus filmes têm uma elevada carga erótica, rondam o tema da infidelidade conjugal, nalguns casos acabando em crime, e, por vezes, vêem-se envolvidos em polémica. 

Proposta Indecente lança o debate moral sobre a santidade do casamento quando um multi-milionário oferece um milhão de dólares a um jovem casal, encarnado por Woody Harrelson e Demi Moore, para passar a noite com a mulher. Claro que tudo se torna um pouco mais fácil quando a proposta é feita por Robert Redford.

Lolita ousa adaptar o controverso romance de Vladimir Nabokov, não por ser um tema tabu, mas porque já tinha dado origem a um admirado filme de Stanley Kubrick.

Por fim, Infiel é um remake de um filme de 1969 por Claude Chabrol, A Mulher Infiel, no qual a luminosa Diane Lane brilha como a mulher titular que leva o marido, interpretado por Richard Gere, a cometer um crime.

Em Águas Profundas, Ben Affleck é Vic Van Allen, milionário reformado numa pequena localidade do Louisiana, onde vive com a esposa Melinda, um papel da cubana Ana de Armas, e a filha de ambos, Trixie, a estreia da jovem Grace Jenkins. Com uma relação fria e distante, Vic e Melinda parecem ter um frugal entendimento, no qual Melinda ostenta sem pudor as suas amizades  íntimas com outros homens em público. Apesar da estranheza dos amigos, Vic aparenta não ter problemas com a situação, uma vez que aceitou amar aquela fogosa e escorregadia mulher, não a querendo perder por causa da prisão dos constrangimentos de um casamento tradicional. Por seu lado, Melinda parece usar os seus relacionamentos como forma de acicatar paixão no conformado e letárgico Vic. Interiormente, Vic ferve em lume brando com ciúmes, intimidando os parceiros de Melinda ao afirmar que matou um homem por se ter envolvido com ela no passado, mas será esta a reacção de um homem traído ou tudo não passa de um perverso jogo do casal?

No seu regresso, Adrian Lyne acerta em cheio na escolha do elenco. Ana de Armas é perfeita como a mulher estrangeira e exótica numa relação de fronteiras muito esbatidas e regras que parecem ser ditadas por um acordo indizível. Não obstante as aparências e a existência de uma filha, é óbvio desde as cenas iniciais que esta é uma relação conjugal que nada deve à normalidade. Ana de Armas é provocante e sensual, desafiando não só Vic como o espectador, para quem Melinda é igualmente cativante e impenetrável. 

Melhor ainda está Ben Affleck, repetindo alguma da ameaça subtil e borbulhante, mesmo abaixo da superfície, da sua personagem de Em Parte Incerta. Affleck tem vindo a revelar-se como um bom vinho do Porto, parecendo melhorar com o passar dos anos. Foi verdade com a sua colorida interpretação em O Último Duelo, e volta a ser verdade aqui. O seu excelente desempenho assenta numa raiva insular persistente e mal contida que não disfarça tanto o amor que sente pela mulher como a aversão aos seus casos amoroso. Haverá quem veja a relação entre os dois como um casamento sem amor, e que Vic apenas quer evitar o divórcio para não ter de pagar uma choruda indeminização à mulher. No entanto, não concordo com essa leitura. Na verdade, o que se conta aqui é uma história de amor fora dos parâmetros habituais, com duas personagens perturbadas num jogo fatal para manterem a chama acesa, e penso que as verdadeiras motivações de Vic estão espelhadas nas opções de Affleck, com uma interpretação que alimenta parte do mistério construído pacientemente por Adrian Lyne quase ao ritmo dos caracóis que Vic cria na sua estufa.

Águas Profundas é uma adaptação de um romance de Patricia Highsmith, autora sobejamente conhecida pelos seus thrillers psicológicos, escrita pela dupla de jovens prodígios Zack Helm e Sam Levinson, este último o criador a série televisiva Euphoria. À primeira vista, parece ser no guião que começam as falhas deste filme, especialmente na reta final. Se Adrian Lyne encena sobriamente o montar das peças de xadrez, com doses suficientes de ambiguidade para despertar a curiosidade, apimentadas por cenas de erotismo mais sugerido do que mostrado, quando a narrativa se precipita para a sua conclusão, a trama subitamente assenta no que aparenta ser uma sequência de incríveis coincidências impossíveis de engolir. 

Acontece que Águas Profundas revela-se muito para além do genérico final. Parafraseando Chuck, do Três Minutos Podcast, um filme não termina quando acaba. E o que numa primeira visualização parece ser um conjunto de circunstâncias tão subtis cujo o entendimento se perdeu na tradução das páginas do romance para o ecrã, acaba por fazer sentido quando percebemos o verdadeiro papel de Melinda em toda a história. Subitamente, um momento de ternura e ligação entre os protagonistas que parece contradizer o que vimos previamente, não só faz sentido como se torna na chave que decifra todo o mistério. É certo que o argumento está longe de ser perfeito, e fica a sensação de ter havido cenas cortadas e uma ou outra situação mal explicada, mas ainda assim Águas Profundas revela-se bem mais subtil do que o seu pedigree de thriller erótico deixaria adivinhar. 

Se Ben Affleck e Ana de Armas são quase suficientes para se justificar ver Águas Profundas, estes são bem apoiados por um elenco secundário competente, mas largamente irrelevante para o desenrolar da história, com destaque para Tracy Letts, o sempre fiável dramaturgo tornado argumentista e actor, e, especialmente, a jovem Grace Jenkins. À imagem com o que acontecia com a filha do casal em Atracção Fatal, também aqui a jovem que encarna Trixie é uma lufada de ar fresco que revela o talento de Lyne para dirigir crianças. De tal forma que, dado a frustrante conclusão do filme, somos brindados no genérico final, de forma totalmente inédita e inesperada, com o que parece ser um outtake da cena em que Trixie canta no carro com o pai. No mínimo, é uma forma estranha, dada a sua leveza e graça, de terminar um thriller que, pela sua própria natureza, nos devia perturbar e chocar. Se tal acontecer, não se espantem. Deixem os acontecimentos fermentarem na vossa cabeça e espantem-se quando perceberem o quanto gostaram verdadeiramente de Águas Profundas. 

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