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Bem-vindo ao deserto do real dos Wachowski

Bem-vindo ao deserto do real dos Wachowski

Nesta edição de Universos Paralelosum programa da autoria de António Araújo (Segundo Take), José Carlos Maltez (A Janela Encantada) e Tomás Agostinho (Imaginauta), que podem encontrar em http://www.segundotake.com/podcast/2018/7/22/episodio142, escolhemos tomar o comprimido azul ou o comprimido encarnado numa discussão sobre o universo da Matrix criado pelos Wachowski.

Bem-vindo ao deserto do real

“Bem-vindo ao deserto do real”. Com estas palavras ditas por Morpheus a Neo, somos lançados numa das trilogias mais marcantes que a 7ª Arte nos tem para oferecer.

Em 1999, os irmãos Wachowskis, Andy e Larry – agora Lilly e Lana, respectivamente – apresentaram ao grande público um filme que se tornaria um dos filmes mais discutidos nos círculos académicos filosóficos desde o Vontade Indómita (The Fountainhead, 1949) de King Vidor ou O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, 1957) de Ingmar Bergman. Tal como no tratado de Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation (1981), de onde a linha de diálogo supra referida é retirada, Matrix procura examinar as relações entre realidade, símbolos, e sociedade, em particular os significados e simbolismo da cultura e dos media que estão envolvidos na construção de um entendimento de uma existência partilhada. No tratado, os simulacros são cópias que representam coisas que nunca tiveram um original, ou que deixaram de ter um. No filme, o simulacro não é uma cópia do real, mas torna-se verdadeiro no seu próprio direito: o hiper-real; ou seja, a incapacidade da consciência distinguir entre a realidade e uma simulação da realidade. Uma simulação é a imitação das operações de um processo do mundo real ou sistema ao longo do tempo. 

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Os Wachowskis, intencionalmente, procuram desestabilizar o espectador com estas questões. Numa entrevista, disseram candidamente que queriam colocar as grandes questões do Homem num só filme. Revelou-se um projecto ambicioso que viria a crescer para uma trilogia (posteriormente estrearam: The Matrix Reloaded (The Matrix Reloaded, 2003) e Matrix Revolutions (The Matrix Revolutions, 2003)). Como sugerido por Slavoj Žižek, Matrix é um verdadeiro teste de Rorschach para teses filosóficas: existencialismo, Marxismo, feminismo, Budismo, niilismo, pós-modernismo, ... É possível encontrar, praticamente, qualquer ismo nesta trilogia. No entanto, algumas questões apresentam-se como centrais: O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é real? O que é a felicidade? O que é a mente? O que é a liberdade, e será que a temos? É a inteligência artificial possível?

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Aparte das questões que os filmes suscitam, esta trilogia também representa um salto bastante relevante dentro do género cinematográfico dos filmes de acção. Repleto de inovações técnicas que permitem aos actores desafiar as leis da gravidade (evidenciando o contraste entre as cenas do mundo actual e as do mundo virtual – “there is no spoon” – como é dito a Neo, pois a Matrix apesar de não ser de forma senciente distinguível do real, não deixa de ser constituída por linhas de código e mudando isso – no filme isso implica mudar-se a si mesmo –, muda-se a realidade aparente, permitindo a Neo parar balas, voar ou saltar entre prédios), como é o caso da “bullet time”, Matrix aproxima-se de um cinema de artes marciais clássico com técnicas modernas; funde lutas coreografadas e a utilização de fios presos aos actores para simular capacidades sobre-humanas (também conhecido como Qinggong) dentro de um mundo virtual para contrastar múltiplas realidades. Cinematograficamente falando este contraste encontra-se na escolha das cores: predominância do verde no virtual e do azul no real. Notemos ainda que o que é representado como realidade virtual não recorre (ou recorre pouco) ao digital, ao passo que o que é representado como realidade actual é, em contrapartida, sistematicamente produzido com imagens digitais. A realidade actual é negra, suja e desesperante, enquanto que a realidade virtual é colorida, limpa e no fundo, feliz. Compreende-se a posição de Cypher: “After nine years, you know what I realize? Ignorance is bliss.” Incapaz de distinguir duas realidades, mas vale viver naquela em que somos felizes.

Mas não é apenas na ligação com os filmes de acção que o Matrix prospera; fãs de longa data de jogos, os Wachowskis incorporam múltiplos elementos característicos dos videojogos nos seus filmes, que acabam por resultar no lançamento de um videojogo – com intervenção criativa dos irmãos na produção –, Enter the Matrix (2003), cuja narrativa segue paralelamente com a dois primeiros filmes, revelando partes extras da história, exclusivas ao videojogo. Esta técnica de contar uma história através de diferentes meios/formatos é conhecida como transmedia e foi também aplicada ao videojogo The Matrix: Path of Neo (2005).

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Ainda com o intuito de aumentar o universo de Matrix e preencher algumas lacunas presentes nos filmes, os Wachowskis produziram uma antologia de curtas metragens de animação denominada de The Animatrix (The Animatrix, 2003). A antologia contém detalhes da história do universo Matrix, incluindo a guerra original entre homem e máquina que levou à criação da Matrix. Conta com convidados de renome como: Shinichirō Watanabe (Cowboy Bebop) ou Peter Chung (Æon Flux).

Filho do cyberpunk, Matrix é uma série de filmes que carrega a tocha bem acesa desse subgénero da ficção científica. Apresenta-se como vários filmes de acção, mas que inevitavelmente suscitam em nós várias questões de grande importância. Aqui, neste pequeno texto, procurei reflectir mais sobre a questão do real, mas a título de possível interesse, deixo outros três problemas filosóficos, presentes neste universo, que aconselho o devido aprofundamento: (i) a alegoria da caverna de Platão, (ii) o dualismo cartesiano corpo-alma e (iii) o problema de Molyneux.    

Bons visionamentos, boas leituras, e vemo-nos do outro lado da toca do coelho.

Tomás Agostinho, Julho de 2018.

 

Fontes primárias

Filmografia

  • Matrix (The Matrix, 1999);
  • The Matrix Reloaded (The Matrix Reloaded, 2003);
  • Matrix Revolutions (The Matrix Revolutions, 2003);
  • The Animatrix (The Animatrix, 2003).

Fontes secundárias

Bibliografia

  • Irwin, W., ed., (2002). The Matrix and Philosophy: Welcome to the Desert of the Real. Chicago: Open Court Publishing Company.

Documentários

  • Philosophy and the Matrix - Return to the Source (Josh Oreck, 2004, Warner Brothers) (https://vimeo.com/53000177);
  • The Hard Problem: The Science Behind the Fiction (Josh Oreck, 2004, Warner Brothers) (https://www.youtube.com/watch?v=h3tmaJnK8l0).

Outras referências

Filmes

  • Metrópolis (Metropolis, Fritz Lang, 1927).

Livros

  • Alice no País das Aventuras (Lewis Carroll, 1865) [edição portuguesa: Livraria Civilização Editora, 2015];
  • A República (Platão, séc IV a.C) (http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf);
  • O Discurso do Método (René Descartes, 1637) (http://www.intratext.com/X/POR0305.HTM);
  • Neuromancer (William Gibson, 1984);
  • Simulacros e Simulação (Jean Baudrillard, 1981) [edição portuguesa: Relógio d'Água, 1991].

 

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