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Glass Onion

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Depois do turbilhão cibernético causado pela incursão no universo Star Wars, Rian Johnson fez a única coisa adulta e racional possível. Ignorou os lamentos e choradinhos das hordas de incels com ligação de banda larga à internet e continuou a trilhar o seu caminho. Quando, em 2019, estreou Knives Out — que em Portugal teve o subtítulo Todos São Suspeitos —, não escondeu a influência dos romances de mistério de Agatha Christie, bem como das subsequentes adaptações ao cinema dessas histórias de crime e investigação detectivesca que viriam a ser conhecidas com whodunnits — expressão, infelizmente, sem tradução adequada para português.

Em Knives Out, Daniel Craig afastava-se do retrato sério e sisudo do seu James Bond com Benoit Blanc, uma composição plena de bonomia e um carregado sotaque sulista norte-americano que nos propunha um novo detective para a galeria das mais famosas personagens de ficção com olho para resolver crimes complexos. Se quiserem ouvir a minha opinião sobre este filme, bem como sobre Brick, o pastiche de film noir de estreia de Rian Johnson nas longas-metragens.

Dado o sucesso algo inesperado de Knives Out, estava lançada uma nova de série de filmes protagonizados por Benoit Blanc. Entra imediatamente em cena a Netflix, e o financiamento para mais dois filmes ficou garantido, algo que Rian Johnson não desdenhou, até porque não se coíbe de anunciar em entrevistas que vai continuar a escrever histórias neste universo (ai, os santinhos da sétima-arte que me perdoem, mas sim, usei a palavra começada por U).

A acção de Glass Onion incorpora a pandemia do COVID-19, aproveitando a realidade do Verão de 2021 em que foi filmado. O detective Benoit Blanc recebe um inusitado convite do excêntrico milionário Miles Bron para um fim de semana na sua ilha privada, na Grécia. Miles será o anfitrião de um jogo de mistério, envolvendo a simulação do seu próprio assassinato, que terá de ser desvendado pelos convidados, nos quais, além do famoso detective, se incluem os seus amigos mais próximos, e protegidos, e ainda Andi, a antiga parceira que Miles traiu e afastou da empresa que ambos criaram.

O primeiro sinal de que algo está errado é a revelação de Miles a Benoit de que não o terá convidado. Daqui em diante, revelam-se tensões entre as diferentes personagens, todas com motivações para quererem livrar-se do milionário. Mas, como não quero dar aqui spoilers, mais não digo sobre o desenrolar da trama, e o melhor é mesmo passar a palavra ao próprio realizador.

Johnson volta a reunir um elenco eclético para mais um mistério “à antiga”, colocando cada personagem na lista de suspeitos de um crime em que, como não podia deixar de ser, nada é somente o que parece.

Começando pela estrela da companhia, Daniel Craig parece estar a divertir-se mais do que nunca como Benoit Blanc. E, se neste filme o detective parece, a maior parte do tempo, uma personagem diferente, mais alheado e até comicamente desastrado, não se preocupem: faz tudo parte da ilusão.

Edward Norton é naturalmente detestável como o proto-Elon Musk Miles Bron, um alpinista social que chegou ao topo à custa dos outros, e que, em diferentes flashbacks, nos aparece como uma cópia a carbono de Frank T. J. Mackey, a personagem de Tom Cruise em Magnólia, e Steve Jobs, possivelmente os seus heróis em cada um destes momentos. Agora, façam com esta informação o que muito bem entenderem.

Todos os seus amigos são, na verdade, aproveitadores que comem da sua mão. A começar com Birdie, a fútil e ignorante ex-supermodelo, encarnada com gosto e convicção por Kate Hudson, que se faz acompanhar pela assistente Peg, a mais uma vez inexplicavelmente abafada Jessica Henwick — sinceramente não sei o que Hollywood anda a fazer: tem aqui uma estrela nas mãos a quem continua a dar papéis nos quais a actriz praticamente desaparece.

Dave Bautista é Duke Cody, um streamer do Twitcher (que coisa tão moderna de se dizer) com inclinações machistas (que coisa tão moderna, mas necessária, de se dizer). Madelyn Cline é Whiskey, a namorada de Duke que encarna o estereotipo da loira burra, mas, tal como a titular cebola, tem mais camadas do que aparenta.

O versátil Leslie Odom Jr. é Lionel, cientista na empresa de Miles, e a destemida Kathryn Hahn é Claire, uma governadora em processo de candidatura ao senado que, tal como Lionel, apesar de alinhar nas jogadas políticas de Miles, tem as suas reservas em relação aos desígnios do milionário.

Todos os elementos do elenco estão à altura do desafio de Rian Johnson, mas o papel mais exigente caiu nos ombros da cantora e actriz Janelle Monáe, como Andi, o elemento proscrito e traído do grupo de amigos. O seu papel, reservado e discreto ao início, irá recorrer aos muitos talentos da actriz que se verá obrigada a revelar muitas diferentes facetas da sua personagem.

Além de Agatha Christie, mais particularmente o romance Morte ao Sol, neste caso, Rian Johnson confessou também como inspiração A Charada da Morte, filme de 1973 realizado por Herbert Ross e escrito pelo improvável par Stephen Sondheim e Anthony Perkins. O realizador adiantou em Agosto ao site oficial da Netflix Tudum que “(O filme) está estruturado em torno de um grupo de amigos, ou inimigos amigáveis, que têm uma dinâmica de poder com um de seus amigos de sucesso. Começa com ele a enviar um convite para que venham jogar este jogo de mistério de assassinato num local exótico. Em A Charada da Morte, é no seu iate, e tudo acaba terrivelmente mal. É basicamente assim que Glass Onion começa.”

Sem medo de nos piscar o olho, enquanto nos ludibria com a trama, Johnson oferece diversos cameos, incluindo ao próprio Stephen Sondheim e a Angela Lansbury, a icónica protagonista da série televisiva que trouxe o charme de Agatha Christie nos anos 80 para o pequeno ecrã com Crime, Disse Ela. Em ambos os casos, esta é uma aparição póstuma, pois tanto Sondheim como Lansbury viriam a falecer entre a data de rodagem e a data de estreia do filme.

O sentido de humor que polvilha Glass Onion pode ainda ser exemplificado pelas referências à kombucha do Jared Leto ou ao molho picante de Jeremy Renner, por exemplo, ou ainda ao relaxado hippie que habita a ilha e que ocasionalmente entra discretamente em cena pelo pano de fundo.

Glass Onion é a continuação natural de Knives Out. Rian Johnson encontrou uma fórmula vencedora, a começar nos títulos inspirados em músicas — desta vez escolheu uma canção dos Beatles —, passando por um elenco recheado de personagens coloridas interpretados por actores reconhecíveis, e terminando num momento de justiça alinhado com o sentimento anti-sistema que é melhor expressado pela anglófila frase “Eat the Rich”.

Tal como acontecia com a agressividade passiva da família no centro de Knives Out, em relação à empregada Marta Cabrera, veja-se aqui a leveza com que Peg, uma mera assistente, é praticamente invisível aos olhos de Miles. Isto para não falar, obviamente, da ostentação que é a construção no topo da mansão que dá o título ao filme, a exibição na sala de jantar da verdadeira Mona Lisa, emprestada pelo Louvre em troca de camiões carregados de dinheiro, ou a disponibilização, através de uma ligação virtual remota, de Serena Williams como personal trainer no ginásio privado que ninguém usa.

Se não nos surpreende pela forma, o escritor e realizador surpreende-nos pela meticulosa construção da narrativa e do quebra-cabeças, com o mistério a ser lançado, para, posteriormente, ser virado do avesso e recontextualizado através de analepses que: dão novas perspectivas sobre cenas anteriores; preenchem lacunas; e oferecem revelações que tinham sido omitidas.

Pode ser pouco original e até formulaico, mas outra acusação que se pode lançar é que também é um bem disposto e divertido entretenimento. E, acreditem-me quando digo que isto é um altíssimo elogio, porque, hoje em dia, são raros os filmes de entretenimento de médio orçamento para adultos.

Deixo só uma última nota em relação aos resultados comerciais do filme. Se o negócio com a Netflix encheu, e bem, os bolsos a Rian Johnson, garantindo pelo menos mais um filme além de Glass Onion, é uma pena que o seu modelo de negócio não permita a comparação do sucesso deste filme com o do filme anterior. Relembro que Knives Out facturou nos cinemas de todo o mundo para cima de 310 milhões de dólares, contra um orçamento de 40 milhões. Por sua vez, Glass Onion, com um custo semelhante, só foi exibido durante uma semana nos cinemas norte-americanos, entre 23 e 29 de Novembro, tendo arrecadado cerca de 13 milhões de dólares, número que não indica nada, visto que agora o filme estará apenas disponível no serviço de streaming, no qual o box office não é aplicável, e tampouco o sucesso do filme mensurável.

Babylon

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Bodies Bodies Bodies

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