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O Ninho

O Ninho

Andrei Tarkovsky desenvolveu uma teoria a que deu o nome de "esculpir no tempo", na qual apontou que a característica distintiva do cinema como um meio é pegar na nossa experiência de percepção do tempo e alterá-la. O realizador russo acreditava que a utilização de cenas não editadas traduzem a real passagem do tempo e, ao utilizar planos de longa duração e poucos cortes, queria fornecer aos espectadores a sensação da sua passagem, do tempo perdido, e a relação entre diferentes momentos no espectro temporal. Martha Marcy May Marlene, a longa-metragem de estreia do norte-americano Sean Durkin em 2011, revelou um cineasta com uma sensibilidade e linguagem cinematográfica em linha com este conceito, fundindo passado e presente numa narrativa não-linear na qual o tempo parece dobrar-se sobre si próprio aprisionando a personagem titular.

O Ninho, o filme que se seguiu, estreou o ano passado, nove anos depois. Não foram propriamente umas férias prolongadas para o escritor e realizador, com Durkin a abraçar entretanto os desafios da parentalidade e a levar o seu tempo no desenvolvimento do novo argumento — segundo as suas contas, a escrita do guião tomou-lhe quatro anos. Se no filme anterior figuravam duas visões alternativas de família como fonte de traumas profundos, aqui volta a focar-se na dinâmica familiar, talvez motivado pela recém adquirida perspectiva ao ser pai, focando-se desta vez no processo de desagregação de uma família mais convencional.

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Situado na década de oitenta, O Ninho apresenta-nos Rory e Allison, um casal com dois filhos, a adolescente Sam e o jovem Ben. Apesar de viverem uma vida confortável em Nova Iorque, Rory convence a relutante Allison a mudarem-se para Inglaterra, o seu país de origem, perseguindo uma oportunidade de trabalho junto da empresa onde tinha trabalhado anteriormente. A família muda-se para uma antiga mansão em Surrey, o local ideal para Allison treinar o cavalo que trouxeram dos Estados Unidos e montar a sua própria escola de equitação. A adaptação revela-se difícil, com as crianças a chegaram sistematicamente atrasadas às aulas, dadas as viagens diárias que Allison se vê obrigada a fazer a dois colégios distintos. Quando os trabalhos nos estábulos para a sua escola param, Allison descobre que o marido não pagou as obras e que, na verdade, e apesar das garantias e promessas, as suas contas bancárias estão praticamente vazias. Entretanto, Rory, cada vez mais impaciente e dependente do sucesso dos seus empreendimentos, vai vendo-os cair por terra.

O Ninho é uma obra muito pessoal para Sean Durkin e incorpora elementos da sua própria infância. O seu pai também foi, tal como o Rory de Jude Law, um comerciante de produtos primários — tradução possível de commodities trader —, desenraizando amiúde a família que também terá chegado a viver em Inglaterra, precisamente em Surrey. Este é um drama familiar, no entanto um drama pontuado por um persistente sentimento de medo e ansiedade próprio de  filmes de terror psicológico. Esta tensão não só é veiculada pela encenação de Durkin como pode também ser testemunhada logo no genérico de abertura pelo grafismo da fonte do título, piscadela de olho não só para um género como para o período em que a história toma lugar. Mais uma vez, o grande trunfo de Durkin é a confiança no espectador, nunca traindo a realidade e verosimilhança de cada cena ao mesmo tempo que sugere uma ameaça subjacente ao desenrolar da trama com base nas suas próprias expectativas. Numa entrevista à revista Filmmaker Magazine, o realizador revelou parte do seu processo: “Para mim, tem muito que ver com subtração. Eu contenho-me e contenho-me e volto a conter-me e, na fase final do guião, vai até um certo ponto. Mas é tudo para garantir que tenho apenas aquilo que necessito e que existem certas coisas que têm de ser percebidas, por isso é uma luta constante entre o tentar dizer o suficiente e não perder a naturalidade das situações.”

Rory é uma excelente composição de Jude Law, ambicioso, sem escrúpulos, mentiroso, medroso. Apesar da sua ânsia para trepar a escada social através de métodos questionáveis, nunca se transforma numa caricatura e nunca chega a perder totalmente a nossa empatia, muito por mérito da ausência de julgamentos morais do autor. Rory é o retrato de um homem com graves falhas de carácter, no entanto acreditando piamente estar a fazer seu melhor para providenciar para a família. No entanto, quem brilha mais alto é Carrie Coon como Allison. Num jantar na casa do patrão de Rory, na sequência de um brinde, Allison descobre que o marido lhe mentiu acerca das razões para a família se mudar para Inglaterra. Naquele breve momento, a sua expressão disfarça estoicamente a desconfiança e suspeita que se instala. Confrontada com a duplicidade do marido, a sua reação não é de confronto, discussão ou gritaria — consequência lógica num qualquer filme desta natureza — mas sim de contenção. Tal como em muitas situações da vida real, Allison regista pacientemente a informação e rumina-a ansiosamente em silêncio. É uma acção que fala mais alto que mil palavras e uma demonstração da amplitude e versatilidade de Coon, que mais tarde, e já de saco cheio, terá a oportunidade de agir segundo os seus impulsos mais extemporâneos ao envergonhar o marido num jantar de negócios ou soltar as suas frustrações na pista de dança de um bar.

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Voltemos às convenções de género (ou falta delas) e à gestão de expectativas. Durante grande parte da duração de O Ninho, não fazemos ideia de que tipo de filme estamos a assistir, apesar de por vezes pensarmos que sabemos e que conseguimos antecipar o seu desfecho. Tanto aparenta ser um drama com promessa de tragédia como um filme de terror gótico ou psicológico com uma inevitável conclusão violenta. A verdade é que é melhor deixar as expectativas à porta. Este é um filme sobre ilusão e auto-ilusão. Sobre o impacto que as nossas decisões têm em quem nos rodeia, especialmente os filhos — assustadoramente verosímil as diferentes reacções de Sam e Ben à sua nova realidade pontuada pela atribulações no casamento dos pais. Sobre a aparência de normalidade e a dificuldade de comunicação no seio familiar. Sobre como um cônjuge, alguém com quem se construíu uma vida, se pode revelar um estranho em quem é impossível confiar. O cavalo da família, um ser vivo amado por Allison, porém apenas um símbolo de estatuto social para Rory, transforma-se então em metáfora central a estes temas. Pode um casamento resistir a uma doença debilitante? Será melhor abatê-lo? Ou será que se corre o risco de o enterrar vivo? Mais uma vez, a ambiguidade do final é apenas aparente, e encerra um optimismo moderado, isento de sentimentalismo, substituído por uma reconfortante fé na resiliência da união familiar. 

Contado desta vez de forma linear, ainda assim O Ninho partilha com Martha Marcy May Marlene uma tal profundidade na caracterização das personagens, e uma tal verosimilhança nas suas cumplicidades e relações, que repeta a proeza daquele filme de nos fazer crer que estamos a assistir a um vislumbre de vidas reais que já existiam antes do filme começar e que não se encerram depois do filme acabar. Com Sean Durkin não há finais felizes. Apenas finais que são o primeiro acto de outras histórias que não teremos a oportunidade de testemunhar.

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