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O ciberespaço de William Gibson

O ciberespaço de William Gibson

Nesta edição de Universos Paralelos, um programa da autoria de António Araújo (Segundo Take), José Carlos Maltez (A Janela Encantada) e Tomás Agostinho (Imaginauta), que podem encontrar em http://www.segundotake.com/podcast/2018/11/18/episodio159, regressamos ao universo cibernético pela mão de William Gibson, o visionário autor literário que celebrizou o cyberpunk e esculpiu o seu panorama com o romance Neuromante.

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O céu por cima do porto era da cor de um aparelho de TV sintonizado num canal sem emissão. 

1983. Novembro. Amazing Stories volume 57. Bruce Bethke publica a sua novela intitulada Cyberpunk, onde nos apresenta esta nova palavra. Apenas um ano mais tarde William Gibson pede-nos que “Diga adeus aos futuros desbotados. Eis um mundo novo inteiramente original, intenso como um choque eléctrico.” — como disse Bruce Sterling, outro dos pais do cyberpunk, sobre o romance que mudou o género para sempre, Neuromancer (1984). 

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Este subgénero da ficção científica (de em diante FC) é caracterizado por vários elementos que raramente encontramos reunidos nas obras cinematográficas ligadas a essa tradição. O primeiro é retirado do filme noir: a estética urbana, nocturna e chuvosa, à qual se adiciona uma dimensão inexistente no noir, esse mundo do passado que nos assombra e espanta, e que é específica desta corrente da FC: a poluição omnipresente, o domínio do caos, as luzes néon, a publicidade imersiva e hegemónica e a infusão de culturas e línguas diferentes na cidade, que é frequentemente também uma personagem, como vimos em Blade Runner (1982) — filme esse que é considerado o primogénito desde género no cinema. 

O segundo elemento é a ligação do cyberpunk ao mundo informático e à informatização do mundo: basta pensar nas primeiras imagens de Ghost in the Shell (1995), onde o mundo se tornou uma vasta rede; ou na omnipresença dos sistemas cibernéticos em Altered Carbon (2018 - ). Isto encerra duas consequências do ponto de vista estético-narrativo. A primeira é que este género expõe, não só uma dicotomia diferente mente/corpo como também novas possibilidades dentro do homem/máquina. Uma mente separada do corpo como vemos em The Matrix (1999), novos dispositivos cibernéticos que permitem melhorar os sentidos humanos — os implantes —, mudando radicalmente o corpo humano e aproximando-o ao de uma máquina, como vemos em Ghost in the Shell ou em Altered Carbon, nos chips de transferência de consciência de corpo para corpo levando a uma inevitável imortalidade, derivada da criação de corpos sintéticos. Exibe também seres humanos cuja a mente é tratada como um programa onde podem alterar dados, como as recordações, como em Total Recall (1990), Robocop (1987), Johnny Mnemonic (1995).

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Lança-se ainda a possibilidade de clones ou corpos sintéticos com mentes sintéticas como os androides replicantes de Blade Runner, ou ainda num caso absolutamente extremo de mentes sem corpo e a sua existência nas redes informáticas, como programas, como vemos no Neuromancer ou no Her (2013).  As combinações são vastas e todas elas visam expandir a nossa ideia de ser humano. A segunda consequência é o tema da realidade virtual, de uma realidade criada pela informática. Filmes como Welt am Draht (1973), The Matrix, The Thirteenth Floor (1999), Tron (1982), Brainstorm (1983) exploram isso. Em muitos, as linhas que separam a realidade actual da realidade virtual são ténues, por vezes, devido à inconsciência do utilizador de que se encontra nessa realidade. Outros como Ready Player One (2018) usam a realidade virtual como uma extensão consciente do nosso mundo, uma alternativa à vivência do quotidiano, recorrendo a tecnologia de imersão sensorial (luvas de dados, fatos ou capacetes de visualização). Em ambos os casos é como se o indivíduo fosse subitamente transportado para esse algures da realidade virtual que ele passa a habitar verdadeira e totalmente.  

O terceiro elemento do cyberpunk é político. O homem equipado com um corpo diferente leva a uma percepção diferente do mundo e com isso vem uma mudança na dimensão política e social, pois essa percepção leva a uma tendência de revolta perante a organização efectiva da sociedade humana; passamos a ver melhor os seus erros. O herói do cyberpunk é sempre um revoltado que foge à ordem social e que a transgride. O cyberpunk é assim uma crítica da sociedade, uma brecha que se entreabre e faz parecer que o nosso mundo é a manifestação de um outro mundo (ou de um outro nível do mundo), que cria um recuo, uma distância que possibilita a crítica. 

E William Gibson não é alheio a estes elementos. O seu romance, Neuromancer, reflecte este mesmo mundo. As suas preocupações com o sistema político e social imposto na América dos anos 80 leva a uma crítica do sistema capitalista, representando uma sociedade decadente e dependente da tecnologia, onde a hierarquia é definida pelo poder financeiro e o sistema político se dissolveu no económico — não muito diferente daquela para a qual nos precipitamos — e que recorre frequentemente à imersão virtual como forma de escape. Do filme noir temos as tramas corporativas, o enredo detectivesco e a espionagem de um thriller, características comuns à obra de Gibson. 

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Aventurando-se fora da literatura, desenvolveu argumentos para a TV e para o cinema: Tomorrow Calling (1993), Johnny Mnemonic (1995), New Rose Hotel (1998) e ainda Kill Switch (1998) e First Person Shooter (2000), dois episódios de X-Files. Todas estas obras são como uma extensão do universo, que é sempre o mesmo: é o de Neuromancer, mas contado de formas diferentes. 

Gibson é um autor vertical, que tal como o género que ajudou a criar, vive numa espécie de bolha que se debruça sobre os mesmos temas, simplesmente actualizando-os à luz da contemporaneidade. Fá-lo, porque existe uma necessidade social para tal. E tal como a frase que abre o Neuromancer e que inicia esta “folha”, Gibson situa-se no campo cinzento e estático que é o seu — e em boa verdade o de todos os que o seguiram — cyberpunk. 

Tomás Agostinho, Novembro 2018


Fontes primárias

Literatura

  • Gibson, W. (1984) Neuromancer. New York, NY: Ace Books. 

Cinema

  • Tomorrow Calling (Tomorrow Calling, Tim Leandro, 1993);

  • Johnny Mnemonic: O Fugitivo do Futuro (Johnny Mnemonic, Robert Longo, 1995);

  • New Rose Hotel (New Rose Hotel, Abel Ferrara, 1998).

Televisão

  • First Person Shooter (Chris Carter, 2000), in Ficheiros Secretos (The X Files, 1993 - , 217 episódios) criado por Chris Carter;

  • Kill Switch (Rob Bowman, 1998), in Ficheiros Secretos (The X Files, 1993 - , 217 episódios) criado por Chris Carter.

Fontes secundárias

Cinema

  • O Mundo no Arame (Welt am Draht, Rainer Werner Fassbinder, 1973);

  • Blade Runner: Perigo Iminente (Blade Runner, Ridley Scott, 1982);

  • Tron (TRON, Steven Lisberger, 1982);

  • Projecto Brainstorm (Brainstorm, Douglas Trumbull, 1983);

  • Robocop - O polícia do futuro (RoboCop, Paul Verhoeven, 1987);

  • Desafio Total (Total Recall, Paul Verhoeven, 1990);

  • Ghost in the Shell: Cidade Assombrada (Kôkaku Kidôtai, Mamoru Oshii, 1995);

  • Matrix (The Matrix, Lana Wachowski (como The Wachowski Brothers), Lilly Wachowski (como The Wachowski Brothers), 1999);

  • The Thirteenth Floor (The Thirteenth Floor, Josef Rusnak, 1999);

  • Uma História de Amor (Her, Spike Jonze, 2013);

  • Ready Player One: Jogador 1 (Ready Player One, Steven Spielberg, 2018).

Televisão

  • Carbono Alterado (Altered Carbon, 2018 - , 18 episódios) criado por Laeta Kalogridis.

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