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John Wick: Capítulo 4

John Wick: Capítulo 4

Quem segue o Segundo Take há algum tempo, e teve oportunidade de ouvir a minha conversa no podcast com Miguel Ferreira aquando da estreia do Capítulo 3, sabe que tenho uma relação bastante tremida com a saga John Wick. Mas como tive oportunidade de ver este novo filme antes de estrear, ainda por cima em IMAX (apesar de, tanto quanto sei, não ter sido filmado nesse formato) gostaria de partilhar convosco a minha opinião, totalmente livre de spoilers, para não estragar a experiência a quem não viu.

Desde já, um aviso. Não se chateiem muito comigo, caso a minha opinião não seja a mesma que a vossa. Não estou a tentar provocar nem a ser polémico. Apenas partilho convosco a minha honesta reacção ao filme. Mas, para enquadrar o meu ponto de vista, um pouco de contexto.

Quando estreou em 2014, John Wick parecia mais um dos muitos filmes de acção encabeçados por Keanu Reeves destinados a uma curta passagem pela salas de cinema e a uma longa mas discreta vida no mercado caseiro à conta dos fãs inveterados do actor. Longe iam os dias de glória de Matrix, e frescas estavam ainda as feridas de 47 Ronin - A Grande Batalha Samurai e O Homem do Tai Chi, este realizado pelo próprio Keanu.

No entanto, a história de um ex-assassino que regressa ao mundo do crime após a morte da esposa e o assassinato do seu fiel amigo foi um inesperado êxito, tanto pelo desempenho de Keanu como o titular John Wick como pela abordagem inovadora à coreografia das cenas de acção pela dupla Chad Stahelski e David Leitch, ex-duplos tornados realizadores, apesar de este último não aparecer creditado como tal. A contribuição de Stahelski, duplo de Keanu Reeves precisamente na trilogia Matrix, entre outras colaborações, e Leitch, o duplo recorrente de Brad Pitt, foi fundamental para a estética e sucesso de John Wick e das subsequentes sequelas, estas já realizadas unicamente por Stahelski, depois de Leitch ter perseguido a sua própria carreira na realização de outras séries de acção. O par trouxe a sua experiência como duplos para a direção, garantindo que as cenas de acção fossem realistas, bem coreografadas e convincentes, enfatizando a violência de sequências captadas em frente às câmaras em detrimento do uso de efeitos visuais e truques de edição.

Por causa das cenas de acção violentas e intensas que envolvem o uso de armas de fogo, os sucessivos filmes foram criticados pela promoção e glorificação de uma cultura de armas e violência desnecessária, glamourizando o sub-mundo do crime e dando uma patina de coolness ao acto de matar. E tenho de vos confessar que estes filmes também me fizeram — e ainda fazem, em certa medida — levantar certas questões no que respeita à responsabilidade da arte no contexto dessa mesma cultura de armas e violência desnecessária que grassa no país de origem destas longas-metragens.

É certo que John Wick é uma obra de ficção e, como tal, deve ser vista como um entretenimento. E bem sei que, embora a violência das armas seja um elemento importante na série, ela é apresentada num contexto fictício e fantasioso, em que as personagens são altamente treinadas e enfrentam desafios extremos, com Wick a ser frequentemente retratado como um homem atormentado pela violência que precisa cometer para alcançar os seus objetivos. No entanto, considero que é tão importante reconhecer que a série John Wick é uma forma de entretenimento, e deve ser apreciada como tal, como ter um diálogo aberto sobre o uso responsável de armas de fogo e do permanente desafio da separação entre ficção e realidade.

E bem sei também que, tal como o amigo Carlos Reis, muitos de vocês estão a pensar no que raio estou eu para aqui a escrever. Ao fim e ao cabo, estamos em Portugal, numa realidade em que as armas não abundam nem são um problema. E, sendo todos nós adultos, qual o mal de apreciar umas sequências de acção de criar bicho? Passámos a vida a ver filmes de tiros, bombas e murros nas trombas e ainda estamos todos aqui, sãos e salvos.

Pois, para ser o mais honesto possível, o problema é que, fora uma ou outra cena ocasional, os filmes do John Wick causam-me um aborrecimento de morte. Fico anestesiado com tanto tiroteio à queima-roupa e cansam-me os tiros na cara. E, porque simplesmente não consigo ignorar as preocupações de que falava há pouco, acho entediante a pornografia das armas, e o culto que lhes é prestado como a solução para todos o males, mesmo que, seja neste contexto de saraivada de balas. Quais as partes que me entusiasmam, então, perguntarão vocês. Posso-vos adiantar que são as que recuperam o espírito das artes-marciais, que, na minha curta-memória, acontecem em maior número no capítulo 3.

Mas vamos lá recapitular o que nos trouxe até este quarto capítulo, visto que, a meio do visionamento do mesmo, e depois de largos minutos em que não percebia porque é que ninguém morria depois de levar vários tiros, é que me lembrei deste conceito fantástico (inserir sarcasmo aqui) que são os fatos de executivo à prova de bala, gravata incluída.

No primeiro filme, de 2014, John Wick é um ex-assassino que se reformou para se concentrar na sua vida pessoal após a morte da mulher. Quando um jovem criminoso rouba-lhe o carro e mata-lha o cão, que, para mal dos seus pecados, tinha sido um presente da falecida esposa, John Wick regressa à vida de assassino profissional para se vingar. Na sequela de 2017, Wick é forçado a voltar ao mundo do crime organizado depois de um antigo colega de profissão o obrigar a pagar uma dívida de sangue. Viaja até Roma para enfrentar os seus adversários e tentar livrar-se do contrato de assassinato que colocou a sua cabeça a prémio. John Wick 3, a sequela de 2019 que teve como subtítulo Parabellum, começa exatamente no ponto em que o segundo terminou, com John Wick a ser perseguido por assassinos depois de ter quebrado as regras do Hotel Continental, um lugar sagrado para os membros da organização criminosa conhecida como a High Table. Agora, com a vida em cheque, Wick luta para sobreviver enquanto tenta desvendar uma conspiração que ameaça o submundo do crime.

Enfim, sejamos honestos: a narrativa pouco importa nestes filmes. Quer dizer, no primeiro filme ainda havia a peculiaridade da premissa, com a morte de um cachorro de estimação às mãos de um arrogante criminoso de meia-tigela a provocar um trilho de mortes, e a promessa de um sub-mundo do crime que opera a vistas descobertas sob a fachada de um banal hotel, conceito engraçado que desde logo empurrava John Wick para o reino da fantasia pura. Mas desde então, ninguém vai a estes filmes por causa da construção do universo ou das reviravoltas da trama. O que as pessoas procuram são cenas de acção cada vez mais intrincadas e escabrosas. O que, em abono da verdade, tem sido um caderno de encargos largamente cumprido por Chad Stahelski e pela sua equipa, o que se reflete, a cada capítulo que passa, em filmes de maior duração do que o anterior. E, se o original acabava ao fim de uma hora e quarenta e um minutos, o Capítulo 4 é um épico de duas horas e quarenta e nove minutos recheado de sequências que farão as delícias dos fãs do género na mesma medida que aborrecerão quem destes filmes nunca gostou.

E a prova de que este é um filme a pensar exclusivamente nos fãs são os minutos iniciais, perfeitamente incompreensíveis para quem não conheça os filmes anteriores. Não há aqui qualquer tentativa de explicar seja o que for aos novatos nestas andanças. Sem me adiantar muito na trama, constato apenas o óbvio: John Wick tem muita gente a querer vê-lo morto, isto enquanto enceta uma senda de vingança que tem como objectivo a possibilidade singela mas inatingível de poder colocar os seus dias de assassino profissional  para trás. Curiosamente, esta é toda uma saga cujo único objectivo do herói é repor o status quo de quando tudo começou.

De volta estão os secundários habituais, sem grande relevância na trama, arrisco-me a dizê-lo. Mas é precisamente no capítulo dos secundários que aparecem as maiores novidades, a começar pelo Marquês, o vilão encarnado por Bill Skarsgard, nitidamente encantado por interpretar um arrogante e ambicioso resquício da monarquia francesa que usa a caça a John Wick para trepar na hierarquia da High Table. Subtileza zero, no entanto, é um prazer assistir ao imponente Skarsgard a dominar com a necessáruia truculência de vilão as cenas em que entra.

Por outro lado, John Wick 4 é também abrilhantado pela presença de Donnie Yen, exímio executante das artes-marciais, aqui com uma personagem implacável e central ao desenrolar da acção, cujas motivações estão muito para lá das motivações a preto-e-branco habituais neste género de filmes. A par de outros secundários, que não revelo, não porque sejam grandes surpresas do elenco, mas porque quero manter a promessa de não estragar nada a quem não viu o filme, cheira-me que estão aqui as sementes para futuros spin-offs desta saga, incluindo um dispositivo narrativo reminescente da promessa feita em Kill Bill de um vingativo spin off que acabou por nunca acontecer. Quem já viu o filme saberá exactamente do que estou a falar.

Keanu Reeves, mais uma vez, volta a trilhar a corda bamba entre o sublime e o ridículo, com linhas de diálogo de um maneirismo tal que ultrapassam a fronteira da paródia, apenas para darem a volta e regressarem ao ponto de partida. Em relação à sua forma física, está cada vez difícil esconder que tem 59 anos na vida real, mas se há alguém que pode consegui-lo, será certamente Keanu Reeves. O homem volta a dar o litro,  tanto no meio de dezenas de duplos altamente competentes e habilidosos, como nos vários encontros mano-a-mano que tem, incluindo com Donnie Yen (um deles, a fazer lembrar, curiosamente, o célebre embate entre Cage e Travolta em Face/Off).

Apesar do elemento de fantasia, não consigo deixar de ser retirado da realidade do filme quando, numa cena passada num hedonístico clube noturno em Berlim, acontecem violentos embates corpo-a-corpo, quedas aparatosas e mortes a tiro, e, no entanto, os patronos do clube continuam alegres e contentes as suas danças como se de um videojogo se tratasse, com as personagens não jogáveis a comportarem-se como autómatos sem qualquer reacção à acção nem qualquer semblante de pessoas do mundo real.

O mesmo acontece numa ridícula cena passada na rotunda à volta do Arco do Triunfo. (Já agora, um aparte: existem vária cenas que tomam lugar em Paris, e custa a acreditar que alguém da equipa de filmagens lá tenha colocado os pés. A fotografia destes filmes foi evoluindo de título para título até culminar, chegados ao capítulo 4, numa estética de postal ilustrado no mínimo discutível.) Bom, mas estava eu a dizer que há uma cena  passada na rotunda à volta do Arco do Triunfo na qual os automobilistas que passam servem como meros obstáculos, quase ao nível dos fantasminhas no Pac-Man, que só lá estão para atrapalhar. Serve esta comparação para ilustrar o quão desinteressante é ter cenas de acção que existem apenas confinadas ao seu próprio conceito, acabando na execução por ter mais de jogo de computador do que de cinema.

O único momento que me fez despertar do torpor em que me encontrava acontece algures no terceiro acto do filme, num par de planos-sequência vistos de cima que, não escapando também elas à estética de videojogo, e não sendo totalmente originais — ao fim e ao cabo, Steven Spielberg já assim filmou uma sequência de Relatório Minoritário há 21 anos — oferecem um novo ponto-de-vista a estes festivais intermináveis de violência que funcionam de igual modo como um elemento desorientador (dados os vertiginosos movimentos de câmara) e uma lufada de ar fresco.

Conclusão, e cometendo o risco de me repetir, John Wick - Capítulo 4 vai encher as medidas de todos os fãs dos anteriores filmes da saga cuja única queixa eram as suas curtas durações. Em igual medida, vai abor recer de morte quem nunca tenha ido à bola com as intermináveis sequências de homens adultos a disparem metralhadoras automáticas à queima-roupa sem qualquer consequência, obrigando a que o assunto tenha de ser resolvido com balázios na cara.

Vencedores MONSTRA 2023

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