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Uma Miúda com Potencial

Uma Miúda com Potencial

Uma Miúda com Potencial, a estreia na realização da actriz Emerald Fennell, também responsável pelo argumento, é uma actualização do filme de vingança, recontextualizado para a era #MeToo. Trocando a violência habitual dos títulos do género por uma contrastante sensibilidade pop que o vira de cabeça para baixo, convida à ocasional gargalhada desconfortável enquanto confronta olhos-nos-olhos a cultura permissiva e protectora de agressores sexuais que tem por tendência culpabilizar as vítimas ou, no limite, ignorá-las. Numa abertura provocadora que capta imediatamente a atenção, o male gaze habitual no cinema mainstream americano, ou seja, a forma como a câmara observa as mulheres em filmes normalmente realizados por homens, é imediatamente subvertido com o olhar em câmara lenta sobre baixos-ventres masculinos numa pista de dança de uma discoteca ao som da primeira de muitas escolhas musicais que só pecam por serem tão óbvias e reforçarem a traço grosso as temáticas.

Carey Mulligan é Cassie, uma mulher na casa dos trinta que desistiu de um curso de medicina na sequência de uma tragédia para se tornar uma espécie de vigilante do comportamento masculino. Frequenta discotecas sozinha e, ao fingir bebedeiras de caixão à cova, invariavelmente atrai simpáticos cavalheiros que, sob o pretexto de a ajudar a chegar a casa, acabam por tentar aproveitar-se dela. Não se trata aqui de inveterados predadores sexuais, mas sim de homens “normais”, passe a expressão, que encaram o comportamento de Cassie como um convite aberto para saciarem os seus desejos. As sequências em que Cassie revela a sua sobriedade, transformado a promessa de prazer ilícito em verdadeiros momentos de terror para o potencial agressor são perturbadores e hilariantes em igual medida. Emerald Fennell não revela imediatamente a natureza do jogo, baralhando com alguma ambiguidade. Qual o objectivo derradeiro de Cassie? O vermelho que lhe mancha a camisa será sangue de uma vítima ou o ketchup do cachorro-quente que come?

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Carey Mulligan carrega o filme às costas com uma interpretação milimétrica e focada. Carregando a culpa de não ter protegido a melhor amiga Nina, vítima de abuso sexual durante o curso de medicina que veio a desistir de estudar e acabou por se suicidar, algo nunca dito  explicitamente mas altamente sugerido, Cassie vive num arrestado estado de desenvolvimento emocional, construindo de dia, tal como o faz à noite, personagens para a ajudar a comunicar com os diferentes mundos que habita. Em casa, veste o papel da adolescente sarcástica, deixando os pais, encarnados pelos veteranos Jennifer Coolidge e Clancy Brown, à beira de um ataque de nervos. No café em que trabalha, é ousada perante o convite para sair do antigo colega de curso Ryan Cooper, encarnado por Bo Burnham. Este é o motor que faz arrancar de facto a narrativa, num braço-de-ferro de tom entre um florescente romance, pontuado por um encontro ao som de uma improvável música de Paris Hilton, e um plano de vingança sobre quem no passado recusou reconhecer sequer o abuso a Nina, abandonando-a à sua sorte. É a presença de Ryan na vida de Cassie que impulsiona este desejo de retribuição pelo reavivar da memória do passado. Os engenhosos planos de vingança são ao memo tempo arrepiantes e, arriscando-me a empatizar com Cassie, justos. No entanto são o produto de uma mente perturbada e não lhe derivam qualquer tipo de prazer. Veja-se o encontro com o advogado interpretado por Alfred Molina. Consumido pela culpa das suas acções passadas, representa a contrição que Cassie procura, no entanto a reação desta é quase de choque e, negada a catarse, resulta numa agressão posterior a um condutor de um automóvel que a insulta por estar parada no meio da estrada. O desejado apaziguamento emocional talvez não seja possível, e, na verdade, Cassie encontra-se numa espiral auto-destrutiva.

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Emerald Fennel invoca iconografia religiosa que realça o perene binómio que serve de lente pela qual muitas mulheres são observadas: ou são santas ou prostitutas. Veja-se o momento em que conhecemos Cassie, prostrada como que na cruz, ou mais à frente quando esquece momentaneamente a sua vontade de vingança e recebe Ryan sob o que aparenta ser uma santificada aréola. Uma revelação adicional no que respeita ao incidente com Nina é a machadada final no quão enraizada está a cumplicidade generalizada com abusos sexuais, encarados de forma casual e depreciativa. Este é também o momento que Uma Miúda com Potencial se torna completamente imprevisível, apesar de neste momento mais se aproximar dos contornos de filme de vingança.

Contas feitas, o que aparenta ser um final triunfante é, na verdade, um final trágico, uma lamentação. Mesmo que se comecem a viver tempos de mudança, e se comece a lançar uma outra luz sobre estes abusos, castigando finalmente os culpados, continuam a haver vítimas cujas vozes merecem ser ouvidas. Emerald Fennell, na sua estreia atrás das câmaras, ofereceu-nos um filme desequilibrado, assente numa feroz interpretação de Carey Mulligan que serve de pilar à titubeante narrativa. Perfeitamente alinhado com o momento actual, é uma bem-vinda adição ao lote de filmes que convidam à reflexão de forma clara e directa, tanto às personagens que estão na mira de Cassie como aos espectadores.

Uma Miúda com Potencial ganhou o Óscar de Melhor Argumento Original na entrega de prémios deste ano e está disponível para ser visto nas salas de cinema portuguesas desde 29 de Abril.

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