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A Favorita

A Favorita

Quando se pensa no cinema de Yorgos Lanthimos, não pensamos imediatamente em dramas de reconstituição histórica. Este jovem realizador grego que deu nas vistas há dez anos com o perturbante Canino, transitou com sucesso crítico para a língua inglesa em 2015 com A Lagosta, distopia futurista onde reflecte sobre a natureza das relações humanas com pinceladas de humor e surrealismo, tendo seguido logo dois anos depois com O Sacrifício de Um Cervo Sagrado, um thriller intenso e sinistro sobre desagregação familiar e expiação de pecados. Além de premiados em Cannes — o primeiro venceu o Prémio do Júri, enquanto que o segundo arrecadou o Prémio para Melhor Argumento —, estes títulos atraíram o interesse de conceituados actores. Nomes reconhecíveis, como Colin Farrell, Nicole Kidman, Léa Seydoux, John C. Reilly, Rachel Weisz ou Ben Whishaw, não desdenharam a oportunidade de trabalhar com uma voz original e refrescante, enquanto que outros, como Olivia Colman ou o novato Barry Keoghan, viram a sua visibilidade aumentar substancialmente com estas colaborações.

Chegados a 2018, estreou no Festival de Veneza, A Favorita, a primeira realização de Yorgos Lanthimos onde o próprio não colaborou na escrita do argumento — da autoria da dupla constituída por Deborah Davis e Tony McNamara —, saindo do certame com o Grande Prémio do Júri. Sendo imediatamente apontado como o seu filme mais «acessível», volta a reunir Olivia Colman e Rachel Weisz, desta vez acompanhadas por Emma Stone, num trio de protagonistas de uma história passada na corte da Rainha Ana, conhecida como Ana da Grã-Bretanha, no princípio do século XVIII.

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Em 1708, a Inglaterra está em guerra com a França, mas a saúde frágil da Rainha Ana (Olivia Colman) deixa-a com pouco interesse na governação do país. A sua conselheira, confidente e amante, Sarah Churchill, a duquesa de Marlborough (Rachel Weisz), governa efetivamente o país através da sua influência junto da Rainha. Os esforços de Sarah para controlar Ana são minados por Robert Harley (Nicholas Hoult), um membro conservador do Parlamento que está contra a proposta de duplicação dos impostos para financiar a guerra. Entretanto, Abigail Hill (Emma Stone), a prima mais nova de Sarah, chega à corte à procura de emprego. A posição de Abigail foi maculada pelo pai, que denegriu o seu bom nome e perdeu a filha para um alemão num jogo de cartas. Abigail é inicialmente forçada a fazer trabalho servil como empregada de copa no palácio, mas rapidamente insinua-se junto de Sarah e, ​​eventualmente, da Rainha Ana. Dá-se então início a uma competição entre Sarah e Abigail pelos afectos de Ana, num triângulo de manipulação e luta pelo poder.

Importa começar por referir que A Favorita não é um tradicional drama histórico, e corre o risco de, dadas as suas dez nomeações aos Óscares, levar muita gente ao engano. Lanthimos pode estar a trabalhar com um guião escrito por terceiros, mas está como peixe na água nesta comédia trágica de recortes negríssimos assente num trio de actrizes em estado de graça. Olivia Coleman é uma revelação, mercurial como a Rainha Ana, sofrendo de depressão e afligida pela gota, rodeia-se de dezassete coelhos nos seus aposentos, tantos como os filhos que perdeu no parto ou pouco depois. Independentemente da veracidade histórica do retrato — Coleman diz que não fez qualquer tipo de investigação, limitando-se a interpretar o que encontrou nas páginas do argumento —, Ana é infantil, caprichosa e imperial; é o pathos do filme, afligida pela tragédia e pela dor, e é sobre a sua personagem que tudo gravita. A Sarah de Rachel Weisz é directa, frontal e manipuladora, por vezes parecendo cruel. Por seu lado, Abigail, tal como interpretada por Emma Stone, é ingénua, generosa e altruísta. As motivações daquilo a que está disposta a fazer para melhorar a sua condição, na vida e na corte, tornam-se, no entanto, ambíguas com o decorrer da narrativa. Ao descobrir o segredo da relação próxima entre a Rainha e Sarah, recorre também a favores sexuais a Ana, que acaba a confundir o seu interesse e os seus elogios com amor. Afinal, não será este também uma expressão da honestidade e da capacidade para contrariar os caprichos, devaneios e tendências auto-destrutivas do outro?

A Favorita é uma proposta rara: um filme com e sobre mulheres; não sobre um qualquer processo de empoderamento, mas sobre mulheres que detêm efectivamente o poder. Neste universo hermético da corte, os homens são acessórios, pindéricas e emproadas figuras com fartas cabeleiras, saltos altos e exageradas pinturas faciais — veja-se o excelente Nicholas Hoult como o repugnante Robert Harley, curiosamente uma das mais cristalinas personagens no que respeita às suas motivações. As manobras para ganhar o favoritismo da Rainha, aparentes brincadeiras de câmara, têm repercussões no estatuto de quem o beneficia, bem como repercussões na política internacional: no fim de contas, está a decorrer uma guerra entre duas nações que pode ser influenciada por quem melhor suspira ao ouvido da soberana. Não admira, portanto, que o filme esteja recheado de diálogos escabrosos entre personagens numa guerra mal disfarçada e amarga travada através de incisivas farpas orais. No momento em que se dá a inversão definitiva de poderes junto da Rainha, a ilusão de vitória é efémera e rapidamente revela o seu enorme custo. Será que ser a favorita da Rainha é uma bênção ou um sacrifício?

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Yorgos Lanthimos, em conjunto com o director de fotografia Robbie Ryan, utiliza amiúde uma lente grande angular, praticamente um olho-de-peixe, que não só distorce as linhas verticais, estilhaçando o formalismo deste tipo de filme histórico, como tira proveito da luz natural e das velas — Lanthimos filmou sem recurso a iluminação artificial —, e enquadra de forma claustrofóbica os intervenientes nos grandiosos e luxuriantes cenários do palácio real. O efeito desorientador é conseguido também através dos constantes movimentos de câmara, mais uma vez por oposição à clássica encenação estática a que estamos habituados, quando se trata de dramas desta natureza. A banda sonora recorre a peças musicais barrocas de compositores como W.F. e J.S. Bach, Handel, Purcell, Schubert, Schumann e Vivaldi, bem como a compositores mais recentes, como Olivier Messiaen, Anna Meredith ou Luc Ferrari que, com a sua música concreta, amplia o sentimento de desconforto premente no ecrã.

É digno de nota que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, eternamente acusada de  conformismo e escolhas burguesas, tenha colocado A Favorita como um dos favoritos para a corrida aos Óscares com dez nomeações: sé é inegável a qualidade das interpretações, é também verdade que este é um olhar atípico, crítico e cáustico sobre a máquina governativa que desconstrói a luta pelo poder e escalpeliza os vícios e caprichos privados em cargos da mais elevada importância. Que o faça olhando para um sistema retrógrado e passado é apenas circunstancial: o ridículo, a falta de valores, a diferença de classes e a corrupção absoluta pelo poder absoluto são, infelizmente, temas perenes sobre os quais importa reflectir.

O episódio do podcast Segundo Take dedicado a A Favorita pode ser ouvido aqui.

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