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Turistas no próprio passado

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Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 22 de Fevereiro de 2017 com o título T2 Trainspotting e pode ser lido na íntegra aqui.

 

Não faço ideia de qual será a reação de quem não tenha visto o filme original de 1996 ao novo filme de Danny Boyle. Mais que uma sequela no sentido tradicional da palavra, e que se reflete no seu desajeitado título T2 Trainspotting, esta é uma experiência complementar onde revisitamos as personagens vinte anos depois de Renton ter traído o seu grupo de amigos e fugido com um saco de dinheiro para parte incerta. Mas qual a função de uma sequela para Trainspotting? E porquê esperar vinte anos para a produzir?

Tanto na literatura como no cinema a perspetiva de revisitar títulos e personagens populares é uma tentação à qual muitos autores constantemente cedem. Irvine Welsh esperou perto de dez anos para recuperar as suas personagens do livro que serviu de base ao filme de Boyle, no romance Porno, uma sequela de Trainspotting passada no universo das produções de filmes pornográficos. Apesar disso a adaptação ao cinema desta continuação nunca passou da fase da especulação. Sabemos agora que John Hodge tinha tentado uma adaptação inspirada neste segundo livro que não tinha satisfeito inteiramente a equipa criativa. Com o aproximar dos vinte anos passados sobre o filme original Hodge regressou ao material incorporando uma visão mais pessoal numa nova versão do argumento que terá sido a chave decisiva no interesse de Boyle e do elenco. Mesmo colocando o cinismo de lado, pois Danny Boyle, Ewan McGregor, Jonny Lee Miller, Ewen Bremner, Kelly Macdonald e Robert Carlyle foram construindo sólidas carreiras, ainda assim é com enorme trepidação que abordamos um reencontro com as personagens cristalizadas na memória num filme tão icónico e importante como Trainspotting.

Mark “Rent Boy” Renton regressa de Amesterdão para onde tinha fugido há vinte anos atrás. Ao visitar Daniel “Spud” Murphy descobre-o ainda a lutar com os demónios do vício da heroína. Este convence Mark a visitar Simon “Sick Boy” Williamson, outrora o seu melhor amigo que, por sua vez, continua um fura-vidas tendo montado um esquema de extorsão de dinheiro na companhia da sua pseudo-namorada Veronika. Entretanto Francis “Franco” Begbie foge da prisão, depois de lhe ter sido negada a liberdade em mais uma reavaliação do seu caso.

Um dos elementos que se destaca imediatamente nas cenas introdutórias é o olhar para o passado. Não só para o filme anterior, mas mais além. O elenco de personagens, que em 1996 funcionavam como avatares para a geração “No Future” finalmente bateu com o nariz no fundo do beco sem saída que lhes estava obviamente e inexoravelmente destinado. E esta realização vem acompanhada do desvanecer dos sonhos e esperanças inocentes de criança. Boyle coloca o filme em diálogo constante com o filme original, de uma forma quase metafísica, mas que é ao mesmo tempo um diálogo com o passado dos personagens. Seja através das referências musicais, ou através do seu sentido visual, T2 não respira uma vida própria, estabelecendo ao invés um cordão umbilical entre os dois filmes e em que ambos se alimentam mutuamente. Quem revisitar Transpotting depois de ter visto a sua sequela vai ter com certeza uma nova visão sobre um filme que parecia cristalizado. E para apreciar plenamente T2 é necessário conhecer bem o filme original. Arrisco-me mesmo a dizer que T2 precisa que o espetador tenha visto o filme anterior em 1996 e que tenha estabelecido com ele uma relação especial. Porque é também sobre a nossa nostalgia que Boyle aqui fala. Apesar da especificidade das personagens e situações de T2 os sentimentos nele abordados são universais e direcionados a esse grupo de pessoas, sendo facilmente intermutáveis com a sua própria experiência e perspetiva sobre a vida.

O elenco, de uma forma generalizada, volta a vestir sem esforço as suas personagens e rapidamente sentimos que estamos na presença de velhos amigos. Apesar do passar dos anos são as mesmas pessoas que conhecemos há duas décadas. Begbie continua preso, volátil e perigoso, enquanto que Simon utiliza a traição de Mark como um bode expiatório para a sua sorte na vida. Este está em processo de separação com a sua mulher e Spud nunca deixou de ser um viciado, apesar da sua alma sensível. De certa maneira as suas vidas estão exatamente na mesma depois de todo o tempo que passou. É por isso que, depois de purgado o mau sangue entre todos, Mark, Simon e Spud encaram este reencontro como uma oportunidade para fazer algo construtivo, ainda que os seus esforços se concentrem na criação de uma casa de “massagens” adultas. Entretanto Begbie, que se vê a mãos com responsabilidades parentais e insuficiências matrimoniais, vai ameaçar os planos do grupo na sua sede de vingança de Mark.

Apesar de Danny Boyle recriar a estética do original, construindo uma nova banda sonora orelhuda, ainda que com um menor potencial icónico, e utilizando truques visuais, como freeze frames ou encenando momentos de fantasia na ilustração da ocasional voz-offT2 é menos frenético e menos original que Trainspotting. O argumento de Hodge, fonte da nostalgia que Boyle encena, é menos focado que o original. Enquanto que no filme de 1996 cada cena parecia vital e imprescindível, com uma montagem nem sempre linear, mas sempre orgânica e em serviço da narrativa, em T2 há muitos momentos que servem apenas para o reafirmar dos temas do filme pela boca das personagens. Além disso, os momentos de leveza e trivialidade parecem inconsequentes. Comparem-se as referências a George Best e a futebol nos dois filmes: em T2 serve apenas uma sequência humorística, enquanto que em Trainspotting coloca em andamento uma cadeia de eventos com consequências trágicas. O que nos traz a uma das fraquezas de T2. As ações das personagens parecem menos consequentes e, por arrasto, menos verosímeis, sendo que há um momento narrativo que quase faz descarrilar o empreendimento, quando Mark e Simon repetem o seu pecado original aparentemente sem sequelas ou efeitos secundários de qualquer tipo.

Pode parecer injusto comparar constantemente os dois filmes, mas esta comparação é convidada pelo próprio autor no corpo de T2 Trainspotting. Este nunca estaria à altura do seu predecessor, nem seria justo ter tal expectativa. Trainspotting é um daqueles raros filmes praticamente perfeitos que capturou um certo estado de espírito social do final do século XX, revitalizou a indústria cinematográfica britânica e definiu pelo caminho uma voz própria que deixou um legado indiscutível na cultura popular. Tanto pelo seu original sentido estético, como pela sua banda-sonora e pela coragem da abordagem do seu tema sem formalidades ou tabus. Ainda assim T2 Trainspotting é um bom complemento a Trainspotting beneficiando da sua relação com o público que envelheceu na sua companhia, e oferecendo uma visão desencantada que irá por certo recalibrar a nossa perceção do mesmo.

 

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